domingo, 18 de maio de 2008

Grandes salários, pouca transparência


Independência dos órgãos que fixam remunerações ainda é pouco clara
O assunto é sensível. Disso ninguém tem dúvidas, nem a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), nem os accionistas e, muito menos, os próprios administradores das empresas.Não é à toa que é no capítulo das remunerações dos órgãos sociais que as cotadas reconhecem incumprir algumas das recomendações da entidade supervisora para o governo das sociedades. Mas mesmo quando dão as recomendações por cumpridas, o certo é que há, em alguns casos, uma grande distância entre aquele que é o entendimento das empresas e a opinião da CMVM sobre as mesmas matérias. O caso mais flagrante é o da recomendação que aconselha a que os membros das comissões que fixam as remunerações dos órgãos sociais de determinada empresa sejam "independentes relativamente aos membros do órgão de administração" da mesma. Isto a bem da transparência e da salvaguarda dos direitos dos pequenos accionistas. Ser independente significa, para a CMVM, uma pessoa que "não esteja associada a qualquer grupo de interesses específicos na sociedade em que se encontre em alguma circunstância susceptível de afectar a sua isenção de análise ou de decisão". Defende o regulador (com base no Código das Sociedades Comerciais), que isto é válido para quem seja titular ou actue "em nome ou por conta de titulares de participação qualificada ou superior a dois por cento do capital social da sociedade". Em declarações ao PÚBLICO, o professor de Finanças da Universidade Católica Nuno Fernandes afirmou que "não é possível a comissão [de vencimentos] ser independente quando o presidente da comissão executiva ou do conselho de administração pertencem à dita comissão, ainda que não votem nos seus salários". O investigador citou estudos que demonstram que "nestes casos, os salários são, não surpreendentemente, muito mais elevados", referindo que "também existe evidência que as participações cruzadas em conselhos de administração, onde A influencia o salário de B, e B influencia o salário de A, levam a aumentos anormais de salários". Basta consultar os relatórios do governo da sociedade das empresas do PSI 20 para perceber que ainda há muitas cotadas onde os membros da comissão de remunerações, apesar de eleitos em assembleia-geral, são na sua maioria (ou totalidade) accionistas de referência destas empresas, com assento nos respectivos conselhos de administração. Accionistas de peso Um destes exemplos é a Galp Energia, cuja comissão de vencimentos é composta pela Caixa Geral de Depósitos, a Amorim Energia e a Eni que, no seu conjunto, têm mais de 67 por cento do capital. Mas, para a petrolífera, a questão da independência não se coloca, uma vez que esta considera que "os membros da comissão que fixa as remunerações dos membros dos órgãos sociais da Galp Energia são independentes dos membros dos órgãos de administração e de fiscalização, não existindo quaisquer relações de parentesco entre eles". Outro caso que se afasta da visão da CMVM é o da Teixeira Duarte, em que a comissão de vencimentos é presidida pelo presidente do conselho de administração do grupo. Refere a empresa que, "embora apenas um dos membros (...) não tenha estatuto de independente (...) a verdade é que sendo a sociedade desde sempre controlada pela família Teixeira Duarte, é natural que esta tenha representantes tanto na comissão de remunerações como no conselho de administração". Até porque a sociedade tem uma "peculiar forma de actuação, o seu distinto cunho empresarial". No caso da Mota Engil, as relações familiares também marcam presença na comissão de remunerações, através de António Vasconcelos da Mota e Teresa Vasconcelos da Mota, que não só pertencem à mesma família como são membros do conselho de administração (o primeiro é simultaneamente presidente do conselho de administração e da comissão de vencimentos da empresa). A empresa reconhece que cumpre "parcialmente a recomendação [da CMVM] porque nem todos os membros da comissão de vencimentos são independentes em relação ao órgão de administração". Há ainda o exemplo da Soares da Costa, em que José Baptista Fino, filho do maior accionista da empresa, Manuel Fino, foi eleito na assembleia-geral de accionistas de 29 de Abril para preencher o lugar deixado vago por Pedro Andrade Santos, que entrou para a comissão executiva da construtora. Quando a CMVM fez o último balanço do cumprimento das suas recomendações pelas sociedades cotadas (entre o período de 2005-2006) chegou à conclusão que a orientação sobre a independência das comissões de vencimento apenas era cumprida por cerca de metade das empresas da bolsa portuguesa. Diferentes opções Nuno Fernandes, autor de um estudo sobre remunerações dos membros dos conselhos de administração das empresas portuguesas cotadas, publicado pelo "European Corporate Governance Institute", salientou que as comissões de vencimento "têm um papel muito importante na política salarial da gestão de topo de uma empresa". "A sua verdadeira função deve ser a de alinhar os interesses dos administradores com o dos accionistas. Isto só pode ser efectuado se a remuneração dos membros do conselho de administração estiver correlacionada com a criação de valor para os accionistas", sublinhou o especialista, recordando que estes órgãos sociais foram criados na sequência dos escândalos das grandes empresas norte-americanas que no início da década enriqueceram à custa dos pequenos accionistas. E se há empresas que ainda nem têm a uma estrutura deste tipo, como sucede com a Altri (embora a eleição e constituição da comissão de remunerações da "holding" industrial de Paulo Fernandes seja m dos pontos da assembleia-geral de accionistas agendada para 28 de Maio), outras como o BPI ou as três do grupo Sonae optaram pela criação de outra estrutura (designada por comissão de nomeações e remunerações). Esta funciona a par da comissão de vencimentos que é eleita pela assembleia-geral de accionistas. No fundo trata-se de um órgão que emana do conselho de administração e que tem natureza consultiva. Segundo a responsável pela comunicação da Sonae, "uma das principais vantagens na coexistência" das duas comissões é a de permitir à empresa "respeitar as melhores práticas e as expectativas portuguesas e internacionais." "A comissão de remunerações e nomeações usa o seu profundo conhecimento para definir a remuneração da comissão executiva, incluindo a remuneração variável e os prémios de incentivo", entre outras funções. A comissão de vencimentos, por seu turno, "acrescenta o seu conhecimento no pagamento dos executivos e define a remuneração dos directores não-executivos da Sonae e de qualquer membro do "board" com estatuto de accionista", disse a porta-voz da Sonae. Caso ligeiramente distinto é o da EDP, em que as remunerações dos órgãos executivos são definidas por uma comissão composta por três membros do conselho geral e de supervisão, enquanto a comissão de vencimentos eleita em assembleia tem por missão definir os salários dos restantes órgãos sociais. Quem e como decide Regra geral, as comissões de vencimentos, formadas por três pessoas (uma preside), encontram-se um vez, ou pouco mais, ao ano. Depois, como diz Agostinho Miranda, vogal da comissão da Zon, "a fixação da remuneração tem de partir da situação da empresa no mercado e da avaliação do desempenho dos administradores. Pode ser fixa e ter uma componente variável. Parte da remuneração pode ainda consistir numa percentagem dos lucros da sociedade, desde que estejam preenchidos certos requisitos previstos na lei". Ex-presidente da comissão de vencimentos da Galp Energia e membro da comissão jurídica do Instituto Português de Corporate Governance, este advogado explica que "as comissões de remunerações devem não só definir a política de remunerações dos órgãos sociais mas também proceder à avaliação do desempenho dos membros executivos do órgão de administração". E que estas "respondem apenas perante a assembleia geral de accionistas e, nessa medida, estão em posição privilegiada para promover o efectivo alinhamento dos interesses dos administradores com os dos accionistas". Nem sempre, no entanto, é assim que o processo ocorre. A Mota-Engil, por exemplo, diz que não submeteu à assembleia geral uma declaração sobre a política de remunerações. Aliás, Nuno Fernandes afirma que poucas empresas o fazem em Portugal. Para Agostinho Miranda, a fixação das remunerações dos executivos é hoje "uma matéria tão sensível e complexa que muitas vezes exige o recurso a consultores especializados e com competência sectorial". Esta é, aliás, uma tendência internacional que começa a chegar a Portugal. A consultora Heidrick & Strugles trabalha neste campo, mas não de forma visível. Já a Egon Zehnder está presente através dos seus sócios nas comissões de vencimentos da Semapa, Portucel e empresas do grupo Sonae. Nuno Fernandes diz que o tema ainda é pouco debatido e que este tipo de empresas "nem sempre têm incentivos claros a limitar as remunerações, e por vezes, os "benchmarks" que utilizam conduzem sistematicamente a aumentos médios dos gestores demasiado elevados". Há uma outra questão: "Uma empresa que tem um contrato de longo prazo para toda a gestão dos recursos humanos e recrutamento de um grupo empresarial, não pode ser chamada a determinar o salário da sua administração. Será que tem de facto capacidade de limitar esses salários, e não perder o cliente?", questiona. Quanto às remunerações propriamente ditas, mandam as boas práticas que incluam objectivos de médio e longo prazo, devendo incorporar uma componente relacionada com a criação de valor para os accionistas. "É fundamental que exista uma ligação directa e forte entre riqueza dos accionistas e os salários dos seus gestores", salientou Nuno Fernandes, explicando que também devem existir "prémios relacionados com a performance operacional" da empresa face aos seus pares e ao mercado de uma forma geral, porque que não é só o crescimento da empresa que interessa, mas também a qualidade desse crescimento. O desejável é que "a empresa (ou seja a riqueza accionista) cresça com rentabilidade superiores às demais", porque se os incentivos criados, e os "benchmarks" utilizados forem "muito dependentes da dimensão da empresa" corre-se o risco de dar os "incentivos errados à gestão", o que no limite poderá levar a que os interesses dos accionistas sejam "diametralmente opostos aos da gestão", concluiu. E por ser fundamental que os accionistas, pequenos ou grandes, percebam com rigor como é calculada a remuneração em todas as suas vertentes (salário, bónus, incentivos de longo prazo em acções e opções), a assembleia-geral tem um papel essencial, pois é a sede própria para debater estas questões. Precisamente para que os investidores estejam na posse de todas estas informações, a CMVM tem insistido, sem êxito, na recomendação da divulgação anual individual das remunerações dos administradores. Na ronda pelos relatórios e contas do PSI 20 referentes a 2007 foi fácil ver que as sociedades rejeitaram esta sugestão, alegando na sua maioria que as remunerações são fixadas por uma comissão eleita em assembleia-geral. Logo, já estão legitimadas, não existindo por isso qualquer vantagem na sua divulgação individual. Argumentos que não ajudam à transparência. Para Nuno Fernandes, uma coisa é certa: nesta matéria já "foram dados passos positivos, mas há ainda um longo caminho a percorrer. A independência destas comissões nem sempre está garantida", assegurou o catedrático.
com Luís Villalobos
Fonte: O Público

Sem comentários: